28 de mai. de 2025

Filipe Nzongo falando a real sobre Design

Reflexões sobre carreira, ciência, tecnologia e os desafios reais do design de produtos digitais. Uma entrevista crítica, densa e cheia de provocações.

Na continuação da nossa série Falando a real sobre Design, convidamos Filipe: designer, pesquisador e autor de Design em Escala, para uma conversa sobre a prática do design de produtos digitais a partir de uma perspectiva ampla, crítica e profundamente conectada com tecnologia, ciência e impacto social.

Com uma trajetória que vai do design gráfico à pesquisa em ambientes marítimos, Filipe compartilha aprendizados sobre carreira, senioridade, formação, IA, sistemas e futuro. Um papo direto com quem não romantiza a área, mas também não abre mão da potência transformadora que o design carrega.

Boa leitura!
— Gabriel Pinheiro


Falando a real sobre Design

O que mais me fascina no design é a possibilidade de trabalhar com pessoas de diferentes formações e experiências. Acredito que essa diversidade nos permite aprender muito com profissionais de outras áreas. Colaborar com especialistas em medicina, finanças e outras disciplinas nos ajuda a entender como essas áreas enxergam o design.

Além disso, acredito que a capacidade de um designer de colaborar com não designers é uma habilidade altamente valorizada pelas empresas. 

Design é uma disciplina fascinante, pois nos permite visualizar o futuro e criar produtos e serviços que serão usados por pessoas. O que me fascina em design é a capacidade de projetar para as pessoas, de pensar em como elas podem estabelecer uma relação positiva com a tecnologia. Esse processo é simplesmente incrível, na minha visão.

Por isso, sempre que estou projetando, faço isso com calma e intencionalidade. Nada nos meus projetos acontece por acaso. Até mesmo a estética desempenha uma função: não se trata apenas de encantar, mas de criar uma relação significativa com o usuário. Acredito que os artefatos que projetamos carregam significados que vão além da simples funcionalidade. Design é feito por pessoas, para pessoas.

Sobre o cenário atual

1. Como você enxerga o papel do Design de Produtos Digitais nas empresas brasileiras?

F: Sendo sincero, o papel do designer de produto nas empresas brasileira continua sendo a mesma nos últimos 15 anos, produzir interface, sinto que o designer brasileiros está preso num cíclo onde recebe requisitos no Jira ou Trello, quebra os requisitos, desenha interface, testa e faz o handoff, não vejo diferença nenhum com o processo fabril. 

O designer brasileiro é perspicaz, mas empresas continua não sabendo como usa-lo para gerar resultados, elas não conseguem ver o valor que os designers podem agregar nos seus negócios. 

O designer é atraido por um discurso quase ‘enganador’ venha trabalhar com a gente você terá influência no produto, vai falar com os usuários, mas no dia a dia é uma ‘pastelaria’. Isso tende a ser cansativo e leva designers a buscarem novas oportunidades onde realmente se sentem realizados e valorizados.

Além disso, vejo também que o designer nas empresas ficam muito numa posição a mercê dos PM, como se eles fossem seus chefes, eles que determinam o que o produto vai ser, ao invés de ser uma parceria que visa agregar o valor no produto e não no ego de alguém dentro da equipe. 

2. Qual é o valor que o Design entrega e qual impacto pode gerar através do trabalho de um designer de produtos digitais?

F: Qual é o valor da saúde para você? Ou qual é o valor da medicina? O valor do design consiste em aumentar a satisfação dos usuários e melhorar a relação deles com os produtos da empresa, assim como a medicina busca melhorar a qualidade de vida das pessoas e promover longevidade. Da mesma forma, o design visa prolongar a relevância e a durabilidade dos produtos.

O design não existe apenas para aumentar a receita da empresa — se fosse esse o caso, ele deveria fazer parte da área comercial. O papel do design é aumentar o valor percebido da empresa no mercado, e não apenas gerar receita. Afinal, até empresas que fazem produtos ruins conseguem faturamento. A Apple, por exemplo, já lançou produtos mal recebidos, mas seu design fortalece sua imagem como uma empresa inovadora e de alto valor percebido.

O papel do designer de produtos digitais é tornar o produto relevante para os usuários finais e garantir que ele continue competitivo diante da concorrência. Esse é um processo contínuo, enquanto o produto existir. Designers de produto digital sabem como se comunicar com as pessoas melhor do que qualquer outra área da empresa. Eles têm a capacidade de incorporar as necessidades dos usuários no produto e, ao mesmo tempo, transmitir a missão da empresa por meio dos artefatos que criam. Pense nisso: quem faz isso melhor do que os designers?

O designer não deve se preocupar em aumentar o GMV (Gross Merchandise Value), pois uma tela criada no Figma, por si só, não impacta diretamente essa métrica. Seu papel é remover as dificuldades de uso do produto. O aumento do GMV é resultado de um conjunto de ações realizadas pela empresa, incluindo o trabalho do departamento de design.

Em resumo, o designer gera valor por meio dos artefatos que cria, e o design, como disciplina, fortalece o valor percebido da empresa no mercado.

3. Quais são os principais desafios para quem busca trabalhar com Design hoje?

F: O desafio está em demonstrar o valor do design sem depender de números ou resultados analíticos. Esse, inclusive, é um desafio para muitos líderes. É comum vermos líderes dizendo: “Aumentei em 5x a receita da empresa”, mas esse crescimento não foi resultado apenas do design — ele ocorreu em colaboração com engenharia, product management, marketing e outros departamentos.

Para quem deseja trabalhar com design, o foco deve estar nos atributos que só o design consegue evidenciar de forma tangível, como a redução do tempo de execução de tarefas, a diminuição de erros de usabilidade e a melhoria da estética percebida do produto. Se você conseguir demonstrar essas mudanças, pode criar uma linha do tempo comparando como o produto era antes da sua chegada e como ele evoluiu com o seu trabalho.

4. No seu contexto, quais são os principais desafios que você enfrenta atualmente?

F: Meu desafio hoje é projetar sistemas interativos para marinheiros. Esse é um contexto naturalmente complexo, repleto de normas, leis e princípios a serem seguidos. Os sistemas que desenvolvo têm como objetivo reduzir o consumo excessivo de energia dentro dos navios.

Para isso, meu design precisa estar em conformidade com todas as normas de ergonomia, além das regulamentações da IMO (International Maritime Organization) – Organização Marítima Internacional. Se o design não atender a esses requisitos, ele sequer pode ir para produção.

É um trabalho minucioso, quase artesanal, onde cada detalhe precisa ser validado para garantir que tudo esteja dentro das exigências regulatórias.

5. Como é um dia típico de trabalho para designers? O que você faz e onde costuma concentrar mais energia?

F: Vou contar um pouco sobre o meu dia. Acordo por volta das 7h da manhã e, às 8h, levo meus filhos para a escola. No caminho para o trabalho, dou uma olhada nos meus e-mails pessoais e profissionais para verificar se há novidades. Quando chego ao trabalho, na maioria das vezes, tomo um café e reviso novamente meus e-mails, especialmente newsletters que assino. Também costumo abrir o Medium para ver se há artigos interessantes sobre design, tecnologia, política ou economia. Além disso, leio notícias em sites como Wired, TechCrunch e It's Nice That.

Atualmente, estou escrevendo um artigo acadêmico que combina teoria do design, interação humano-computador e Sustainable Interaction Design. Pretendo submetê-lo a um jornal de engenharia marítima.

6. Designers devem se preocupar com outras disciplinas estudando sobre Design? Existe o risco de generalização do Design de Produtos Digitais?

F: Os designers não deveriam se preocupar com outras áreas estudando design. Pelo contrário, isso é algo positivo. Quanto mais pessoas conhecem e entendem o design, mais ele será valorizado. 

Um público mais amplo consciente do que é um bom design significa um mercado mais exigente e, consequentemente, produtos e serviços melhores.

Passamos anos evangelizando o design. Agora, acredito que chegou o momento de as pessoas começarem a se converter sozinhas. O design é essencial para a humanidade. Sem ele, o mundo seria um lugar muito pior. O design permeia toda a vida humana, do nascimento até a morte. Se você refletir um pouco sobre isso, verá que faz sentido.

Recentemente, assisti a um vídeo do jornalista, humorista e entertainer sul-africano Trevor Noah, no qual ele mencionava ter lido O Design do Dia a Dia, de Don Norman. Ele descobriu o conceito de affordances e começou a entender por que algumas maçanetas são bem projetadas e outras não. No vídeo, ele disse que ficou surpreso ao perceber que um bom design não se trata apenas de estética, mas também de funcionalidade e da forma como os objetos atendem às necessidades das pessoas. Isso lhe deu uma nova apreciação pelo pensamento e intenção por trás de tudo com que interagimos, desde os objetos mais simples até sistemas complexos. Esse é apenas um exemplo de como o design pode impactar outras pessoas quando elas começam a se interessar genuinamente pelo assunto.

Sendo sincero, não vejo esse processo levando à generalização do design de produtos digitais. O design tem suas limitações e, quanto mais alguém estuda design, mais entende os limites da disciplina. O design de produtos digitais, por exemplo, está restrito ao design de sistemas interativos.

Sobre desenvolvimento

1. O que é mais importante saber para quem está começando? Há algo que você gostaria de ter aprendido antes de entrar na área?

F: Design é uma disciplina social. Design é sobre pessoas, não apenas sobre técnicas ou truques no Figma. Antes de tudo, é sobre como o trabalho que você faz impacta as pessoas.

Quando comecei no design, primeiro mergulhei na teoria e, mais tarde, aprendi a usar ferramentas como Photoshop, Illustrator, Fireworks e Corel Draw. Meu primeiro software foi o Microsoft Photodraw 2000. Só depois de entender a teoria, fui para a prática.

Fazer design sem conhecer a teoria leva à criação de trabalhos sem conceito e sem embasamento. Por isso, recomendo que você estude bastante a teoria e busque traduzi-la em prática. Por exemplo, se você aprender sobre princípios de composição visual, tente aplicá-los criando uma interface. Pense em como desenvolver um layout para um site de música ou outro tema do seu interesse. Esse processo ajuda a solidificar o conhecimento, pois promove um ciclo de teoria-prática, prática-teoria.

Todo bom designer que conheço entende bem a teoria e sabe como aplicá-la na prática. Eu sou assim.

Último conselho: trabalhe com pessoas que sabem mais do que você. Busque empresas onde o time de design seja forte e aprenda com essas pessoas. E, acima de tudo, não tenha medo de fazer perguntas que pareçam bobas. Você está apenas começando sua jornada na disciplina.

2. Na sua visão, existe alguma disciplina por onde faça mais sentido começar?

F: Design de produtos digitais é o design de artefatos que intermediam a interação entre o usuário e o produto. Por isso, recomendo estudar ergonomia, usabilidade e design de interface, não confunda com visual design, que é design de comunicação.

Embora o visual design seja importante, ele entra em um estágio posterior no design de produtos digitais. O foco inicial deve estar em construir interfaces coerentes, compreensíveis e com boa ergonomia. Dominar esses aspectos vai te diferenciar de muitos designers que se concentram apenas no visual design. 

3. O que você acredita que designers de produtos digitais iniciantes não podem deixar de aprender?

F: Acredito que designers precisam dominar usabilidade, conhecer isso a fundo mesmo. Além disso, é essencial estudar engenharia de interface, ciência cognitiva, design de interação, visual design, engenharia semiótica e tecnologia, é fundamental entender como tecnologias modernas podem ser exploradas dentro do design de produtos digitais.

Por fim, um designer precisa prototipar bem. Design de produtos digitais é sobre construir software, e antes do desenvolvimento, é necessário modelar como o software vai funcionar e simular seu uso. Ser bom nisso faz toda a diferença.

4. Quais são os principais erros e acertos que você percebe em pessoas que estão entrando ou migrando para a área?

F: Muitos designers se especializam cedo demais, mas design é uma disciplina ampla e complexa, com diversas ramificações. Para que limitar suas possibilidades tão cedo? Você está apenas começando. Explore ao máximo a disciplina, experimente diferentes áreas, pratique design gráfico, animação, UX, motion design. Use seu tempo livre para descobrir o que realmente te interessa.

Não cometa o erro de se especializar antes da hora. Eu comecei minha carreira como designer gráfico, depois trabalhei como web designer, aprendi motion design, e essa jornada me levou até onde estou hoje. Se eu tivesse me fechado em uma única área no início, talvez não tivesse descoberto minha verdadeira paixão.

O design não precisa e nem deve ser uma jornada linear. Permita-se explorar, errar, aprender e se reinventar ao longo do caminho. É nesse processo que você encontrará sua verdadeira vocação. 

5. E para quem busca evoluir na carreira, quais erros você entende que devem ser evitados?

F: Evite depender da aprovação dos outros. Seu chefe não conhece suas ambições pessoais e, no fim das contas, você é o único responsável pela sua carreira. Não deixe isso nas mãos de ninguém.

Trace uma linha do tempo: onde você esteve, onde está e para onde quer ir. Isso vai te dar clareza sobre onde colocar seus esforços e quais passos seguir. Evoluir na carreira não é questão de sorte, é questão de intenção. Não espere oportunidades caírem no seu colo.

Quer ser manager ou lead? Converse com quem já está nessa posição, entenda o que é esperado, faça cursos, leia livros, assista a podcasts. Posicione-se como o líder da sua própria jornada.

Tudo que conquistei na minha carreira foi resultado de escolhas intencionais. Eu não esperei pela sorte; eu criei a minha própria sorte.

6. Na sua visão, quais características técnicas diferenciam um designer Júnior, Pleno e Sênior?

F: Depende muito. Design de produtos digitais é uma área multidisciplinar, que conecta pessoas com backgrounds diversos. Por isso, definir níveis como Júnior, Pleno e Sênior pode ser desafiador.

No entanto, eu diria que:

  • Júnior: está começando, ainda não sabe muito e precisa de direcionamento constante. Você não pode deixá-lo trabalhar sozinho em tarefas complexas;

  • Pleno: já tem mais autonomia, consegue seguir sozinho em tarefas menos complexas, começa a propor ideias e a construir um racional por trás das suas decisões de design. Ainda assim, precisa de orientação em desafios mais estratégicos;

  • Sênior: tem domínio da prática e consegue conectar suas decisões de design à teoria, justificando cada detalhe técnico do projeto.

Embora um designer sênior precise entender como a empresa ou o produto em que atua funciona, ele não é um analista de negócios. O design tem suas limitações e não devemos esperar que o designer seja responsável por tudo. Existem profissionais específicos para isso, como Product Managers (PM), gerentes de negócios ou de projetos, que são responsáveis por essas áreas. Não devemos incumbir muitas responsabilidades nas mãos do designer, pois isso pode desviar seu foco e comprometer a qualidade do trabalho de design. 

Além disso, o que eu espero de um sênior é uma boa capacidade analítica e criativa, além de uma linha visual própria. Quanto mais você cresce na carreira, mais o seu trabalho precisa ser autoral.

Já viu os trabalhos de Eddie Opara? Recomendo que pesquise esse designer e compare seu estilo com o de Michael Bierut. Ambos são altamente experientes, mas suas abordagens visuais são completamente opostas. Esse é o nível que um designer sênior deve aspirar: ter uma identidade forte e bem definida.

7. Como você enxerga a trajetória até alcançar o nível Sênior em Design de Produtos Digitais?

F: Eu sou um cara que estuda muito design e acredito que, para alcançar a senioridade, você precisa ter um profundo conhecimento. Como comentei anteriormente, se você não sabe muito, ainda não é sênior. Já se perguntou por que seu líder ganha mais que você? A resposta é simples: ele sabe mais que você. Somos pagos de acordo com a quantidade de conhecimento acumulado, algo que chamamos de experiência. Sênior significa conhecimento acumulado ao longo dos anos.

Sempre gosto de comparar o design com outras disciplinas, como engenharia, arquitetura e medicina. O que esperamos de um médico sênior é uma capacidade elevada de autonomia e criatividade. Sim, médicos também precisam ser criativos para propor soluções adequadas aos casos que enfrentam. O mesmo acontece com os designers: alcançar a senioridade leva tempo, prática e muita exploração.

Design de produtos digitais é um universo único, que exige uma abordagem diferenciada. Logo, você vai precisar aprender muitas coisas até se sentir realmente competente. No mínimo, 6 anos de experiência são necessários para se considerar sênior, se você tiver feito faculdade de design ou já tiver atuação prévia em outras disciplinas relacionadas, como arquitetura, design gráfico ou motion design. 

8. Como você escolhe quais temas estudar? Baseia-se nas demandas do mercado, nas tendências, nas capacidades tecnológicas ou em outros fatores? 

F: Pessoalmente, não dependo de demandas ou temáticas do momento. Comecei a estudar machine learning e generative AI bem antes do "boom" dos LLMs. Quem trabalha com design de produtos interativos precisa entender profundamente a tecnologia. Se você não sabe como a computação funciona, há uma grande probabilidade de propor ideias esdrúxulas. A tecnologia define a evolução do design de produtos digitais. Portanto, conhecer tecnologia vai te permitir pensar além do óbvio. Eu estudo de acordo com meus interesses pessoais, não estou preocupado com o que é tendência no momento. A AI generativa já era discutida na academia muito antes de ser um assunto na bolha tech. Por isso, eu estudo o que está sendo discutido em grandes conferências de tecnologia e design.

No meu livro Design em Escala, falo sobre sistemas de design generativos, que podem gerar UI e código ao mesmo tempo. Coloquei isso no meu livro porque sabia que, em algum momento, nós chegaríamos a esse nível de inovação. Estou sempre fazendo análises empíricas da nossa realidade, porque, como diria Bill Buxton: “O que vai ser inovação daqui a 10 anos, já existe há 10 anos”.

Deixe-me te contar uma história. Em 2017, eu ganhei o Hackathon da Serasa por um único motivo: eu conhecia como MFA (Autenticação Multifatorial) funciona. O desafio era aumentar a segurança dos CPFs para evitar roubo de dados. Até então, a verificação da identidade das pessoas era manual e levava até 72 horas. Para resolver esse problema, propus duas soluções:

  • Preenchimento automático via OCR: O usuário tira uma foto do seu RG, capturamos os dados e preenchemos automaticamente os campos para evitar erros de digitação. Se o nome da mãe estiver errado, o processo de validação de identidade vai para uma esteira manual, o que retarda a verificação. Com o preenchimento automático, evitamos esse problema.

  • Autenticação via MFA: Algo que a Serasa ainda não utilizava na época. Embora o preenchimento dos dados fosse preciso, a pergunta era: como garantir que o usuário realmente fosse o dono do CPF? A resposta foi usar a autenticação multifatorial, algo que até então não era implementado pela empresa.

Esse é um exemplo claro de conhecer a tecnologia. Se eu não tivesse noção de como MFA funciona, a solução para esse problema não teria existido.

Além disso, gosto de estudar também patentes de design de produtos digitais. Busco entender o que torna aquele design tão único para ser patenteável e como aquele design pode ser implementado em outros contextos.

Minha recomendação para você, caro leitor, é: analise o que está sendo feito hoje, pense em sua inexistência e, agora, imagine algo que poderia resolver o mesmo problema. Essa é uma abordagem científica, muito comum em departamentos de P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) de grandes empresas.

Portfólio & Carreira

1. Qual dica você daria sobre portfólio para quem está começando? Quais critérios ajudam a estruturar um portfólio efetivo e quais atributos não podem faltar?

F: O portfólio precisa contar uma história. Nós não somos artistas, somos designers. O processo de design não é linear e não deve ser. Por isso, eu aprecio ver o problema que o designer está tentando resolver. Gosto de ver como ele atacou aquele problema, quais eram suas visões ou hipóteses para solucioná-lo. É interessante ver também a fase de concepção; eu quero ver os esboços. Se tiver apenas um esboço, eu sei que o designer não explorou o suficiente. Bom design não é trabalho de acaso.

Por fim, quero ver como a solução final se alinha com o problema inicial. Se não houver essa conexão clara, sei que o trabalho do designer foi em vão, ou foi feito sem a devida reflexão sobre o que realmente precisava ser resolvido.

Além desse storytelling, o designer pode e deve explicar o racional por trás das suas escolhas. Por que ele usou aquela cor naquele lugar? Por que aquele botão está ali e não em outro lugar da interface? Qual princípio de design está sendo aplicado?

Por exemplo: "Nessa interface, usei o princípio de ‘Uma ação principal por tela’ para evitar que o usuário se distraísse com outras opções. Isso ajuda a focar sua atenção na tarefa principal." Outro exemplo seria: "Nessa tela, o ponto focal é o botão azul em destaque, porque ele representa a ação mais importante que o usuário deve tomar nesse momento."

Eu não quero apenas ver como o design aumentou a receita. Design ruim também pode aumentar a receita, mas o que eu realmente quero ver é o racional por trás das decisões. Isso mostra que o designer domina o que está fazendo. Se não houver esse racional, para mim é apenas um trabalho Frankenstein: uma mistura de elementos que não se conectam de forma coerente.

2. Como desenvolver conhecimento em Design por meio de cases fictícios? E, na sua opinião, de que forma eles ajudam na busca por vagas?

F: Você desenvolve conhecimento em design praticando design. Cases fictícios não ajudam a desenvolver o verdadeiro conhecimento em design, mas sim a praticar habilidades técnicas. Qualquer pessoa pode abrir o Figma, copiar uma interface e isso não faz dela um designer. Da mesma forma, o fato de alguém conhecer altimetria não faz dessa pessoa um matemático.

Portanto, você se torna designer quando aprende a trabalhar dentro dos limites de um projeto real. Os cases fictícios oferecem liberdade excessiva, o que não é necessariamente bom para o designer. Embora eles possam ser importantes para treinar habilidades táticas que podem ser aplicadas em projetos reais, não fornecem a casca necessária para operar no mundo real.

Uma pessoa que treinou o tempo todo em um simulador não é um piloto até realmente pilotar um avião com passageiros. Do mesmo jeito, você se torna designer quando trabalha em projetos reais. Esta é a minha opinião. Você pode ser um aspirante, mas não é um designer pleno.

Imagine um aluno que fez uma maquete de um projeto de uma casa em um terreno em declive. Ele não lidou com questões reais como: como o solo vai se comportar após dois dias de chuva intensa? Qual a orientação solar? Como o clima afeta o projeto? Você o chamaria de arquiteto? Talvez o contratasse, mas ele ainda teria que provar seu valor ao longo dos anos.

3. Como você acredita que um Plano de Desenvolvimento Individual (PDI) pode ser estruturado para proporcionar um desenvolvimento concreto?

F: Se a empresa não tem um plano de carreira, não faz sentido construir um PDI (Plano de Desenvolvimento Individual) para os designers. Quem tenta implementar um PDI sem um plano de carreira bem estruturado está, na prática, enganando seus liderados.

Agora, se a empresa tem um plano de carreira, o primeiro passo seria realizar um mapeamento de habilidades do designer. Para isso, começaria com uma autoavaliação, onde o designer expressaria como se enxerga no momento. Em seguida, faria uma segunda rodada de avaliação, envolvendo pares, colegas designers, PMs (Product Managers) e engenheiros, para obter uma visão mais holística do desempenho e potencial do designer. Após isso, realizaria uma análise comparativa para verificar as diferenças entre a autoimagem do designer e a percepção externa.

Com esses dados em mãos, seria o momento de conversar com o designer e traçar um plano de carreira alinhado, tanto com os objetivos da empresa quanto com os objetivos pessoais do designer. O PDI, embora seja uma ferramenta do líder, deve ser do designer. Ele precisa refletir 60% do que a pessoa almeja alcançar e 40% do que a empresa precisa, ou vice-versa, dependendo da situação.

Com o PDI bem definido, o próximo passo seria criar uma linha do tempo das atividades que o designer deve seguir para alcançar os objetivos propostos. Essas atividades devem ser divididas em curto e longo prazo, com metas claras e alcançáveis. Uma vez que isso esteja estruturado, o PDI está mais do que pronto para ser implementado.

Enquanto líder, meu papel seria acompanhar de perto o progresso do designer, avaliando sua evolução constantemente. Vale ressaltar que o PDI é um documento dinâmico, sujeito a revisões, atualizações e modificações conforme o desenvolvimento do designer e as necessidades da empresa mudam.

Uma visão sobre futuro

1. Como você gostaria que fosse o futuro do Design? E o que seria necessário para que esse futuro se concretize? 

F: Falar sobre o futuro sempre me leva a reflexões profundas. Eu acredito que o futuro do design está intrinsecamente ligado à aproximação do design com a ciência. A resolução de problemas através do design segue um processo bastante científico: criamos hipóteses, buscamos validá-las ou refutá-las, desenvolvemos protótipos ou pequenas soluções, testamos, coletamos feedback, avaliamos e evoluímos. Isso é exatamente o que os cientistas fazem. Falo isso a partir da minha posição como pesquisador no campo de Interaction Design (IxD) e Human-Computer Interaction (HCI).

Embora muitas pessoas sejam contra processos, entendo essa resistência, pois também compartilho dessa visão. Porém, o design possui um processo, que embora não seja linear, existe de alguma forma. As soluções não surgem do nada, há uma linha de pensamento por trás. Portanto, precisamos refinar cada vez mais esse processo, pois vamos deixar de ser apenas "puxadores de pixels" e nos tornar designers cientistas. Se você deseja entender mais sobre essa abordagem, recomendo que leia sobre research-based design ou practice-based design.

Além disso, o futuro do design também passa por abraçar a tecnologia. Se você estudar a história do design, perceberá que o design só cresceu verdadeiramente quando aproveitou a evolução tecnológica. A produção em massa só foi possível por causa da tecnologia; a redução de erros foi viabilizada pela tecnologia. Então, eu espero que os designers aproveitem as inovações tecnológicas para propor soluções mais humanistas, pois o design, no fundo, consiste em tornar a tecnologia mais humana. O design é uma disciplina social, e, ao abraçar a tecnologia, ele pode construir um futuro mais inclusivo, acessível e empático.

2. Quais oportunidades você enxerga para a evolução da nossa disciplina de Design de Produtos Digitais?

F: Percebo que o design de produtos digitais tem uma grande oportunidade com o crescimento das tecnologias emergentes, e acredito que o estudo de como usar essas tecnologias pode impulsionar a criatividade no design. Criatividade é sobre combinar conhecimentos e aplicá-los de maneira eficaz a problemas específicos. Se os designers puderem usar essas tecnologias para propor soluções criativas de alto nível, isso será bastante interessante.

O design de produtos digitais também lida com o comportamento humano, e vejo uma grande oportunidade de influenciarmos esse comportamento. Acredito que os designers poderiam estudar mais sobre como as pessoas mudam de hábitos, o que as leva a adotar novos comportamentos. Entender como as pessoas alteram seus hábitos pode fazer toda a diferença, e permitirá que os designers criem produtos com maior potencial para impactar essas mudanças.

Nossa sociedade contemporânea já se tornou tecnocrática, e não há como voltar atrás. Portanto, devemos aproveitar o momento atual para projetar tecnologias mais conscientes e tranquilas, que não apenas busquem viciar os usuários, mas que os empoderem. Um exemplo seria como podemos ajudar as pessoas a controlarem melhor seus hábitos de consumo alimentar, gerenciar o uso de energia elétrica, ou até mesmo descartar o lixo de forma mais sustentável.

O design de produtos digitais oferece muitas oportunidades. Cabe a nós refletirmos sobre onde queremos concentrar nossos esforços. 

3. Como você acredita que a Inteligência Artificial vai impactar o trabalho em Design?

F: A IA começou a transformar o trabalho de design por volta de 2010, quando começamos a desenvolver produtos complexos usados por bilhões de pessoas. Foi nesse momento que passamos a perceber que poderíamos criar experiências personalizadas, oferecendo recomendações de produtos, filmes, textos e fotos. Os designers que já compreendiam a tecnologia na época conseguiram propor soluções inovadoras que mudaram o rumo de grandes empresas, como é o caso da Netflix.

A chegada da IA nos permitiu criar produtos que refletem a personalidade e o comportamento de cada usuário com uma fidelidade sem precedentes. Personalização era um sonho para nós, mas, até então, havia muitos livros da área que desaconselhavam esse tipo de abordagem. Hoje, porém, acredito que estamos no momento ideal para construir produtos que não só imitam o comportamento humano, mas também ajudam o ser humano a se tornar mais inteligente, capacitado e saudável.

Não podemos reduzir a IA a uma visão puramente técnica, apenas como uma ferramenta para aumentar nossa eficiência ou para gerar interfaces de usuário (UIs). Isso é uma visão muito simplista. A IA vai além da geração de textos e imagens. Ela tem o potencial de transformar profundamente a maneira como interagimos com o mundo e como nos relacionamos com a tecnologia.

Dizer que a IA vai simplesmente aumentar nossa eficiência é um argumento que me lembra das promessas feitas sobre a computação pessoal no passado. Muitos diziam que os computadores iriam nos tornar mais eficientes, mas, na prática, eles nos deram novas capacidades que não eram previstas, como a expressão criativa através de artefatos digitais, armazenamento de informações e a criação de conteúdos interativos.

Portanto, não devemos enxergar a IA como a salvadora da nossa disciplina, mas sim como mais uma ferramenta poderosa que nos ajuda a criar produtos e sistemas capazes de melhorar a vida humana de formas que ainda estamos descobrindo. Isso é parte de uma visão mais humanista e social sobre o impacto da tecnologia em nossas vidas, que vai além de uma simples busca por eficiência.

4. Como você vê a próxima geração de designers de produtos digitais?

F: Acredito que a próxima geração de designers será aquela capaz de construir design diretamente dentro da tecnologia, não apenas imitando-a, como fizemos na nossa época com protótipos estáticos criados no Fireworks, Axure ou InVision. Esta nova geração será composta por designers pensadores-executores, e o que quero dizer com isso é que eles não apenas serão capazes de pensar estrategicamente sobre o produto, mas também de executar essa estratégia com a fidelidade de um produto final.

Essa geração entenderá que a tecnologia é uma matéria do design e a usará como parte integrante do processo de design. Assim como usamos padrões de UI nas interfaces, eles irão utilizar padrões de UI que incorporam IA. Por exemplo, se estou criando uma interface para uma empresa de aluguel de carros, posso simplesmente arrastar um componente de UI que já vem embutido com IA, capaz de gerar recomendações personalizadas, integrado com APIs para mostrar a loja mais próxima, com base na localização do usuário.

Eu acredito que essa será uma geração de designers muito mais equipados, que não apenas pensarão sobre como construir experiências interativas, mas também terão a capacidade de implementar essas experiências de maneira prática e eficiente. Eles terão uma compreensão mais profunda das tecnologias emergentes e aplicarão isso no design de uma forma que nós, da geração anterior, ainda não podemos. Vamos aprender muito com a próxima geração de designers.

Sobre o Filipe

Designer e pesquisador angolano especializado em Interação Humano-Computador (IHC), Interaction Design e Experience Design. Com uma carreira sólida e multifacetada que começou como designer gráfico e evoluiu para áreas avançadas de design e pesquisa, possui formação acadêmica composta por Bacharelado em Engenharia de Software, especialização em IHC/UX para plataformas Web e Mobile e MBA em Experience Design. Atualmente, atua como PhD Fellow no Ocean Industries Concept Lab, um laboratório dedicado a pesquisas e estudos de design para ambientes marítimos, onde explora abordagens inovadoras para interfaces complexas que visam reduzir o consumo de energia, tornar navios mais sustentáveis e ajudar marinheiros a tomar melhores decisões.

Autor do primeiro livro sobre sistemas de design escrito em português, Design em escala: projetando sistemas de design consistentes, uma obra técnica que explora estratégias para escalar o design de maneira coesa e eficiente. Também possui ampla experiência como professor de UX Design e Design Research, tendo lecionado em instituições renomadas como FIAP, Miami Ad School, ESPM e PUC Campinas, contribuindo para a formação de novos profissionais na área.

Ao longo de sua trajetória profissional, desenvolveu projetos diversos que abrangem o design de interfaces para aplicativos bancários, portais informativos, plataformas de e-commerce, visualização de dados, sistemas de infotainment para carros e interfaces para navios, sempre focando na criação de experiências digitais consistente, eficientes e satisfatórias. Sua atuação inclui liderança de design e contribuições relevantes para a UX Collective, oferecendo artigos e insights valiosos para a comunidade de design. Com uma prática multidisciplinar que combina Experience Design, UI Engineering, Design Research e Interação Humano-Tecnologia, mantém um olhar atento para inovação e consistência na criação de sistemas complexos.

Publicado em:

Gabriel é estrategista, autor e palestrante. Publicou livros sobre design estratégico, já palestrou na UX Conf e em empresas como Itaú, Boticário, Magazine Luiza, Ifood e Livelo. Formado em design de produto, é sócio da PunkMetrics e já trabalhou em empresas como Wine.com.br, Autoglass, SKY, Handmade e Thoughtworks. Além de ajudar no desenvolvimento de outros designers, é especialista em temáticas como estratégia, ecossistemas, inovação e educação.

Livros de Design que amplificam e potencializam a voz do Design brasileiro.

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