24 de out. de 2025

Design como cultura, resistência e presença no mundo

Entrevista com Mabuse

Mabuse é designer, educador e uma das figuras mais inquietas da nossa área. Falamos sobre a relação entre arte, tecnologia e território; o nascimento do Cesar e do Porto Digital; e os desafios de manter o Design como força transformadora em meio a um cenário de desmaterialização, hype e confusão de vocabulário.

Ele tem uma visão crítica e generosa sobre os ciclos que moldaram o Design no Brasil, com uma trajetória que conecta Recife ao mundo, do analógico ao digital — sempre com os pés fincados na cultura local.

Boa leitura!
— Érico Fileno

Definições de Design e o início da jornada

A definição de Design é algo complexo e profundamente ligado ao ponto de vista de quem responde. Para mim, Design – especialmente no contexto de ensino e aprendizagem – tem tudo a ver com nossa capacidade de interagir com o mundo a partir das nossas habilidades físicas e de manipulação.

Muita gente pode pensar que redes sociais nos conectam mais ao mundo, mas, na prática, percebo que elas frequentemente limitam nossa capacidade de ação. Curiosamente, a internet de 1994 parecia carregar um potencial maior para intervenção e transformação do mundo por meio do Design.

As definições de Design são fluídas. Elas se adaptam com o tempo, com o lugar e com o contexto cultural. Historicamente, o Design foi muito atrelado à visão eurocêntrica e à industrialização, mas, se olharmos para países como o Brasil no início do século XX, a realidade ainda era predominantemente agrária. Isso reforça a ideia de que o Design deve ser entendido a partir do contexto e da relevância que ele tem para cada momento da vida.

Minha entrada no Design aconteceu entre 1985 e 1987, por meio do Design Gráfico. Eu tinha 14 anos, fazia parte de uma banda de punk e comecei a desenhar camisetas e capas de fitas. A cena jornalística em Recife era pequena, o que me levou a colaborar com textos e layouts em algumas publicações locais. Em 1990, fundei uma pequena empresa de Design. Pouco tempo depois, com o surgimento da World Wide Web em 1994, mergulhei no universo digital, o que acabou me levando a colaborar com empresas como o UOL e, em 1999, a me juntar ao Cesar.

O nascimento do Cesar e o contexto recifense

Sobre o início do Cesar, é importante lembrar que ele nasceu dentro do Departamento de Informática, em 1996. Mesmo sendo algo embrionário, com poucas pessoas em uma sala, o Design já estava presente. A disciplina de Interação Humano-Computador já fazia parte da grade de Ciência da Computação naquela época.

Mas, para entender aquele momento, é fundamental considerar a chamada “ideologia californiana” – uma visão que enxergava a tecnologia como um meio de transformação social. Ainda não existia o boom das startups, era mais um espírito de época, um desejo genuíno de mudança.

O Cesar surgiu justamente de uma fusão entre isso e o contexto brasileiro, especialmente o de Recife. Era uma mistura de aceleracionismo – fruto da crise industrial dos anos 1980 – e da crença de que o software seria a nova indústria do futuro.

Lembro que o Cláudio Marinho, figura-chave na fundação do Cesar e posteriormente do Porto Digital, acreditava que o futuro estaria nas mentes brilhantes, não nas máquinas pesadas.

Essa visão vinha acompanhada de um pensamento desenvolvimentista forte, herança da Sudene nos anos 1970. Havia a consciência de que o crescimento das empresas deveria estar conectado ao desenvolvimento regional. Caso contrário, estaríamos alimentando desigualdades sociais futuras. E, além disso, existia uma intensa efervescência cultural – da qual eu também fazia parte – que ajudava a costurar tudo isso. O nascimento do Cesar, portanto, foi resultado direto da confluência dessas forças: tecnologia, desenvolvimento econômico e cultura local.

Arte, tecnologia e educação como caminho

Na década de 1990, Recife já era um polo de Design no Brasil, com nomes de peso em sua história. Porém, havia um certo descompasso. Os cursos acadêmicos, embora tradicionais, ainda estavam muito voltados ao Design Gráfico e de Produto, sem perceber as transformações que estavam em curso. A crise dos anos 1980 havia deixado um vácuo de liderança institucional, tanto do governo quanto das associações profissionais. O setor estava meio perdido.

Nesse cenário, a interseção mais potente não era entre Design e tecnologia, mas entre arte e tecnologia. As estruturas industriais para as quais os cursos formavam seus alunos estavam em declínio. Ao mesmo tempo, a revolução da microinformática e da internet chegou com força, e pegou muita gente desprevenida. O Design parecia uma bola em uma máquina de pinball, ricocheteando sem rumo.

Mas como Rafael Cardoso defende, o Design tem uma natureza integradora, e isso o torna ideal para momentos de transição. Temos uma habilidade especial para reunir diferentes disciplinas e transformar o ambiente com o que temos à disposição.

A prática no Cesar e os aprendizados com o mercado

No Cesar, vivemos isso de forma muito clara. Nos primeiros tempos, a relação entre Design e informática lembrava desafios enfrentados por grandes empresas globais, como a Nokia nos anos 1990. Desenvolvedores acabavam acumulando a função de designers, mas logo percebemos a importância do teste com pessoas usuárias, da prototipação, das validações antes do desenvolvimento. Foi aí que o Design começou a ganhar espaço real, transformando os tradicionais levantamentos de requisitos em pesquisa centrada no usuário.

Com o crescimento do Cesar nos anos 2000, o Design passou a atuar também na pré-venda dos projetos. Começamos a trabalhar com clientes muito diversos, o que nos forçava a adaptar abordagens e aprender continuamente.

Lembro de quando trabalhamos com a Positivo Informática, em Curitiba – ali se estabeleceu uma relação mútua de ensino-aprendizagem. A gente ensinava inovação e Design, e aprendia sobre os desafios específicos do negócio deles.

Um dos maiores aprendizados desse período foi justamente essa capacidade de transitar entre setores distintos. Desde o desenho de equipamentos médicos até a criação de currículos para cursos de Design. A variedade de experiências era enorme – e esse era um dos maiores atrativos.

Atritos produtivos, vocabulário e presença no mundo

Claro, os desafios também eram muitos. O principal deles, talvez, era o diálogo entre áreas como Design e Ciência da Computação. Cada uma com seus próprios paradigmas: enquanto cientistas da computação focam em algoritmos, designers olham para o humano. Essa diferença pode gerar ruído, mas, quando bem compreendida, é justamente o que gera inovação.

Outro ponto delicado era a apresentação dos resultados de pesquisas qualitativas. Muitos esperavam respostas diretas e objetivas, mas o Design lida com nuances, com complexidade. Os insights são não-lineares, vêm de múltiplas conexões e contextos.

Em determinado momento, surgiu a dúvida: o Cesar deveria se transformar numa fábrica de software? Optamos por permanecer como um centro de inovação. E essa escolha reforçou nossa crença no valor dos atritos produtivos entre Design e tecnologia. Valorizamos as pessoas que transitam entre mundos – tecnólogos com sensibilidade artística, designers que sabem codar. Essa versatilidade é a chave para a inovação.

O Cesar, para mim, reflete os ciclos históricos do bairro do Recife, que desde os anos 1950 vem se reinventando. A cultura local é essencial nesse processo. Não adianta importar soluções – é preciso adaptar, dialogar com o contexto. Um bom exemplo disso foi quando enfrentamos o desafio de gravar o som do tambor alfaia. Não bastava tecnologia: era preciso sensibilidade, escuta, respeito pela tradição.

Embora existam avanços em várias regiões do Brasil, o foco ainda se concentra muito no eixo Rio-São Paulo. Precisamos reconhecer a potência de lugares como o Recife, com sua história e suas soluções criativas.

Design desmaterializado e crise de vocabulário

Hoje, o Design transcende estética e funcionalidade. Ele é uma ferramenta de transformação. O problema é que, enquanto o Design ganhou espaço e reconhecimento, o papel de designers, paradoxalmente, perdeu visibilidade. Muitas empresas usam metodologias como sprints e canvas, mas relegam designers a funções limitadas. Isso se agrava com a desmaterialização do Design – ele deixou de ser só sobre objetos tangíveis e passou a operar também no campo do abstrato, do invisível. Isso confunde muita gente.

Além disso, o vocabulário em torno do Design virou um campo minado. Termos que antes tinham sentido claro hoje são vistos com desconfiança ou foram esvaziados. Muitos profissionais estão, inclusive, tentando se redefinir fora dos rótulos tradicionais.

Estamos, sem dúvida, num momento de reflexão. É hora de retomarmos o protagonismo, de mostrar o valor real do Design em um mundo cada vez mais complexo. É um desafio – mas também uma oportunidade.

Mabuse

José Carlos Porto Arcoverde Jr., conhecido como H.D. Mabuse, é designer e pesquisador com mais de três décadas de atuação em design, tecnologia e cultura. Mestre em Design pelo PPGDesign da UFPE, onde atualmente cursa o doutorado, desenvolve pesquisa sobre transformações humanas e não-humanas mediadas pelo design, explorando as implicações sociais, culturais e tecnológicas dessas interações. Desde 1990, sua prática articula colaboração, comportamentos emergentes e remix de linguagens entre artes visuais, música, filosofia e design. Essa perspectiva híbrida e experimental sustenta sua busca por compreender como o design pode tanto refletir quanto provocar mudanças profundas na sociedade.

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Mulher sorridente com cabelo curto e cacheado, vestindo blusa preta, em ambiente interno com fundo branco.

Um dos principais nomes da inovação digital e do design estratégico na América Latina. Com três décadas na interseção entre tecnologia, design e negócios, construiu carreira sólida em empresas como Itaú, Visa, EY, CESAR e sua consultoria, além de fundar iniciativas pioneiras em UX, CX e design de serviço no Brasil. Natural de São José dos Campos (SP), cresceu em ambiente de forte influência tecnológica e acadêmica. Jovem, estudou Informática e foi assistente de pesquisa no ITA, desenvolvendo sólida base técnica. Apesar do viés técnico, escolheu o Design como campo de atuação, graduou-se pela UFPR, fez especializações e mestrado, e se engajou em movimentos estudantis e projetos de transformação social.

Livros de Design que amplificam e potencializam a voz do Design brasileiro.

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